Mais uma vez me pego escrevendo sobre situações vividas em um evento underground. Lógico que eu mesmo já não suporto isso. Não agüento nem mais esse termo: "underground". Eu penso que estou estagnado, pois não consigo me deslocar desse meio. É certo que ler e escrever fanzines, montar uma banda e conhecer lugares e pessoas, foi uma descoberta muito válida para mim. Mas quando você fica mais velho sente-se um besta repetindo as mesmas coisas que fazia aos dezoito anos. Não só isso. Também enxergamos o que devemos repudiar nessa coisa de "cena alternativa", "cena indie" ou "underground": Egocentrismo, competição, inveja etc. Características presentes nas pessoas, que cercam tal atmosfera incluindo nós mesmos. No fim todos estão querendo aparecer e alguns poucos conseguem fazer disso algo divertido e provocante. Controlar o ego é um exercício constante para quem tem uma maldita banda na cena.
Há dois anos, nosso movimento que já existe há onze anos, deu uma virada. Deixamos de ser uma cena musical underground para ser um espaço comunitário. Deixamos de dar prioridade à cena alternativa e focamos nossa energia na construção de um espaço libertário, autogerido e contestador. São palavras muito comuns no clichê ativista. Mas não vou deixar de usá-las, pois elas são justas ao que acontece em Serrana. Moleques num domingo de manhã ouvindo Misfits com enxada na mão capinando o mato. Meninas pintando as paredes por horas visando embelezar um espaço comum. Mães que organizam almoços coletivos para os convidados. Rapazes que se dedicam a dar aulas de instrumentos a outros moleques. Banda que grita com tanto ódio sua existência frustrada que faz da existência algo não tão frustrante assim. Lágrimas e sorrisos pelas madrugadas. O que era uma cena musical independente aqui virou uma visão de mundo independente. Reuniões, democracia direta, amizade, problemas e soluções. Experiência coletiva.
Nesses dias pra trás fui tocar em mais um evento underground em uma outra cidade. Pela primeira vez na minha vida preferi ficar em casa naquele dia de extremo frio. Mas era um compromisso. Pegamos a van, contamos o dinheiro, brincamos um com o outro e seguimos. Eu estava cercado de novos amigos. Não eram mais aqueles mesmos que há anos estiveram na mesma comigo. Nesses anos muitos passaram e quase só eu fiquei. Me senti um tiozão. Lógico que pensei comigo mesmo: Por que eu ainda estou nessa? Era mais um show underground. Bandas tocando, querendo aparecer e pouca conversa além daquelas de sempre. Encontrei "amigos do meu tempo". Eles estavam lá pra curtir um som. Quem acreditava naquilo tudo afinal?
Eu estava cercado de "moleques" e de repente me senti muito bem por isso. Toquei com uma banda que é uma piada para muitos. Banda dos tempos em que acreditávamos na cena. Banda do tempo que eu e meus "amigos" éramos moleques também. Eles saíram e eu continuei. Quem estava comigo no palco não eram os meus "amigos das antiga". Eram meus amigos atuais. Já me diverti tocando muito com essa banda, mas dessa vez não tinha egocentrismo. Tinha diversão e cumplicidade. Eu senti isso com outros "moleques" do ABC. Mas agora estávamos jogando em casa. Quando descemos do palco voltamos a brincar. Rimos e cuidamos um do outro. Me passou muita coisa naquele momento. Foi uma das poucas vezes que me senti acolhido por pessoas de verdade. Eu me senti protegido e aquecido. Queria que eles não crescessem nunca. Pensei de relance num futuro imediato. Como aconteceu com os outros eles também vão mudar. Terão coisas mais importantes na vida e fiquei com muito medo desse dia. Eu queria que nada mudasse e que aquela noite durasse uns dez anos pelo menos. Que o abraço não terminasse e que os cantos nunca deixassem de toar. A noite em que sentimentos voltaram à tona. Daí eu vi que a gente nem tem que se importar com o tal "underground", na verdade ele é um pano de fundo para nossa história.
Pensei que eu estava parado no tempo, mas na verdade eu queria que o tempo parasse mesmo.
Ricardo Brasileiro